O triste fim de Josefina e de seu testamento

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– Distinções entre indignidade e deserdação em testamento –

Foram 90 anos de vida. Josefina faleceu viúva. Deixou dois filhos, João e Maria, e algum patrimônio. João e Maria não se davam bem. Rastros públicos de suas desavenças ficaram visíveis no momento de dividir o patrimônio deixado pelo pai. Foram anos de disputa judicial. Não que fossem muitos bens. Pelo contrário: era coisa pouca. Dois pequenos imóveis e algum dinheiro. O que abundava eram os ressentimentos.

Josefina não ficava alheia ao cenário de conflito dos filhos. Pessoa pouco esclarecida e bastante fragilizada por problemas de saúde, passou a ser facilmente manipulada por eles. Assim, alternava os períodos em que parecia estar do lado do filho com aqueles em que pendia mais para a filha. Era um pêndulo movido pelo desafeto.

Com a morte da mãe, João e Maria teriam de dividir a outra metade dos bens: a que ficara com Josefina, por ocasião do falecimento de seu marido.

Providenciados os documentos necessários ao inventário, qual não foi a surpresa de Maria ao se deparar com um testamento deixado por Josefina, por força do qual ela deixava para João toda a parte disponível de seu patrimônio. Feito em cartório, o documento já possuía mais de dez anos e fora produzido numa fase em que a velhinha estava sob os cuidados do filho – e rompida com Maria.

Ocorre que, desde a produção do testamento, muitos incidentes ilustraram a vida desta pequena família, fazendo que, no momento de sua morte, Josefina estivesse na posição oposta: agora, brigada com João e sob os cuidados exclusivos de Maria!… Mas o fato é que Maria desconhecia a existência do testamento, e Josefina – ah, Josefina –, quem é que disse que tinha cabeça para lembrar de uma coisa dessas? Se lembrasse, provavelmente o teria alterado…

E agora? O que poderia ser feito? Para responder a essa pergunta, vale analisar os fatos transcorridos entre a feitura do testamento e o falecimento de Josefina.

Nos últimos anos de vida desta sofrida senhora, não dando conta de lhe dedicar todos os cuidados e atenção de que ela necessitava, João a convidou para “passear”. Na verdade, em vez de um passeio, tratava-se de manobra para, contra a vontade de Josefina, interná-la numa casa de repouso para idosos. Na ocasião, isso foi facilitado pelo distanciamento entre Josefina e a filha.

Para evitar que Josefina pudesse ter pleno exercício de sua liberdade, João tentou obter laudo psiquiátrico que atestasse a incapacidade civil da mãe e, com isso, tornar-se seu representante legal. Seria uma forma de evitar qualquer alteração no testamento previamente feito.

Contudo, não tardou para que a filha percebesse que algo não ia bem e passasse a questionar o irmão a respeito do paradeiro da mãe. Graças à intervenção policial e judiciária, Josefina pode retornar à sua residência e João se tornou alvo de procedimento criminal.

Voltemos ao inventário de Josefina.

Após descobrir a existência do referido testamento, Maria quis saber que medidas poderiam ser tomadas para invalidá-lo. A resposta está no Código Civil (CC).

A indignidade como causa de exclusão da sucessão

O Código Civil brasileiro traz o conceito de “indignidade”. O que seria o “indigno”? É todo aquele que tenha apresentado alguma das condutas descritas pelo artigo 1.814 do código. Em decorrência disso, poderá ser excluído da sucessão ou, em outras palavras, poderá perder o direito a receber herança.

Por que uso uma linguagem hipotética, dizendo “poderá perder” em vez de “perderá” o direito a herança? É que o reconhecimento da “indignidade” é algo a ser declarado por sentença judicial. No caso narrado acima, não basta que João tenha se portado mal em face de sua mãe: é preciso que isso seja reconhecido e declarado por um juiz, em processo judicial a ser aberto por Maria. E nem poderia ser diferente! Afinal, é preciso garantir a João o direito de se defender dos argumentos trazidos por Maria. Esse é um princípio básico de qualquer sistema jurídico moderno, conhecido como direito ao contraditório.

Vale destacar que a declaração de indignidade não é medida a ser tomada pela pessoa a quem pertenciam os bens (ora, essa já estará falecida). Quem poderá se valer do procedimento é qualquer herdeiro a quem a medida possa beneficiar e, para isso, há um prazo, que é de quatro anos a contar da data de abertura da sucessão (óbito).

Na hipótese em que a conduta causadora de indignidade consista no homicídio ou tentativa dele, tendo por vítima a pessoa de cuja sucessão se tratar, ou ainda seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente, a ação judicial também poderá ser movida pelo Ministério Público.

Alguém poderia perguntar: Josefina não poderia, por iniciativa própria, deserdar algum dos filhos? A resposta é afirmativa. O tema também é tratado pelo Código Civil e traz o nome de “deserdação”. Portanto, além da indignidade, o ato de deserdação também pode ser causa de exclusão de herdeiros. São, porém, procedimentos bastante distintos.

A deserdação como causa de exclusão da sucessão

Diferentemente da indignidade, a deserdação é ato decorrente de iniciativa direta da pessoa a quem pertenciam os bens. Evidentemente, se preciso tomar a iniciativa de deserdar alguém, é porque estamos tratando dos chamados “herdeiros necessários”, que são os descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro.

A lei garante aos “herdeiros necessários” a reserva de 50% do patrimônio existente, a chamada “legítima”. Se Josefina quisesse beneficiar algum amigo ou entidade destinando-lhes seu patrimônio, estaria obrigada a respeitar o limite mencionado, tendo em vista que possuía dois filhos.

Na ausência de “herdeiros necessários”, poderia deixar a totalidade de seus bens a quem quisesse, bastando, para isso, fazer testamento.

Mas, assim como a declaração de indignidade, o ato de deserdação não é simples. Ele também implica algumas formalidades, que servem para impedir que seja utilizado de forma leviana.

A deserdação deve ser formalizada por testamento, no qual o testador está obrigado a declarar expressamente suas razões. Mais do que isto: estas razões são as elencadas pela lei e o herdeiro a quem ela aproveite terá o prazo de quatro anos, a contar da data de abertura do testamento, para comprovar sua veracidade. Exemplo de condutas autorizadoras de deserdação são a ofensa física ou injúria grave do herdeiro contra o proprietário dos bens transmitidos.

É importante destacar que o ato de deserdação ocorre não apenas de ascendentes em relação a descendentes, podendo ser feito por descendentes em relação a seus ascendentes.

Da reabilitação expressa ou tácita

No caso de Josefina, vimos que João passou a apresentar uma conduta reprovável após a existência de testamento que o beneficiava. Josefina poderia ter revogado o ato, mas não o fez; tampouco produziu outro testamento visando a deserdar o filho. Portanto, apenas restou a Maria a ação declaratória de indignidade.

Mas existem outras hipóteses. Vamos supor que, diante do procedimento criminal em que foi arrolado, João se desse conta do risco de ver anuladas as disposições testamentárias feitas em seu favor. O que poderia fazer? Se as circunstâncias o favorecessem, poderia buscar, junto à sua mãe, a feitura de um segundo testamento, no qual ela confirmasse o primeiro e declarasse expressamente seu perdão pelas ofensas de seu filho.

Hipótese diversa seria a da testadora que, após uma ofensa por ela conhecida, tomasse a iniciativa de produzir testamento e nele beneficiasse o ofensor, embora não o reabilitasse expressamente. Neste caso, eventual sentença declaratória de indignidade não poderia afastar a disposição testamentária, embora produzisse efeitos sobre o restante da herança.

Como vemos, o assunto é complexo e recomenda o acompanhamento de um especialista, preferencialmente no momento em que ainda se possa fazer valer a vontade da pessoa detentora dos bens cuja transmissão se dará.

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