É curioso como algumas questões jurídicas podem gerar estranheza até pelo simples fato de serem capazes de gerar um debate. O tema do artigo de hoje é exemplo disso. Se a pergunta que dá título a este artigo for feita a uma mulher trans, a resposta será muito clara, podendo ser assim ilustrada: “Por que não valeria? A Lei não foi feita para proteger pessoas que sofrem violência em decorrência de gênero?!”
Mas o que pode parecer muito simples para alguns, nem sempre o é para outros. Vale registrar que a aplicabilidade – ou não – da Lei Maria da Penha a mulheres trans gerou intenso debate nos tribunais de nosso país, tendo produzido decisões divergentes. Vamos ver o que prevaleceu.
A discussão chegou ao judiciário por iniciativa de Luana Emanuelle, uma jovem trans que tomou a iniciativa de denunciar o próprio pai por espancá-la durante tentativa de estupro. A luta de Luana não foi fácil – e nem breve. A violência sofrida por ela ocorreu há dois anos. Tentou se valer da Lei Maria da Penha, mas o direito lhe foi negado pelo fato de ser transsexual. O tribunal de justiça do Estado de São Paulo entendeu que a lei se aplicava às “mulheres”, não podendo tal conceito ser estendido para alguém trans…
O caso passou por todas as instâncias da justiça estadual, até chegar a Brasília, onde o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu-lhe outro rumo, proferindo julgamento a favor de Luana.
É interessante analisar o contraste entre a percepção que Luana tem dos fatos com a extensão do debate travado no processo judicial.
Visão de Luana, hoje com 19 anos de idade: “Não sei explicar muito bem, porque para mim é algo tão simples, que deveria ter sido solucionado de forma simples também” – do jornal o Estado de São Paulo de 07/04/2022. O que seria esse algo tão simples, citado por Luana?
A Lei Maria da Penha e as mulheres trans
Vejam só: segundo matéria do Estadão, a denúncia que Luana fez do próprio pai não teria deixado dúvidas sobre os fatos. Ou seja: todas as provas do espancamento da jovem e da autoria do crime foram produzidas. As autoridades policiais e o judiciário foram desafiados a aplicar ao caso as regras da Lei Maria da Penha e, neste momento, expressaram o entendimento de que tal lei se destinava apenas a mulheres, não sendo este o caso de Luana.
A Lei Maria da Penha foi criada em agosto de 2006, e traz fortes mecanismos de defesa da mulher contra violência doméstica ou familiar. Quando digo “fortes mecanismos” de defesa, quero me referir não apenas às medidas concretas previstas na lei – como a determinação de afastamento do agressor, impedindo a possibilidade de contato não só físico, mas também virtual (envio de mensagens, por exemplo) –, mas também à rapidez com que tais medidas são adotadas. A lei confere ao juiz, por exemplo, poderes para determinar o imediato afastamento do agressor do lar.
Quando as autoridades paulistas, ao analisarem o caso de Luana, entenderam que a lei não se aplicava a ela pelo fato de não ser “mulher”, demonstraram evidente confusão entre os conceitos de “sexo biológico” e “gênero”. Além de conceitual, esse tipo de equívoco encontra lastro no preconceito, na crença de que a expressão da sexualidade humana fora dos padrões da heterossexualidade seja algo “desviante”, devendo ser rechaçada ou, ao menos, não merecer respeito e proteção.
O problema é que, normalmente, não temos maturidade ou facilidade para reconhecermos nossos próprios preconceitos. Achamos “normal” aquilo que se encaixa em nossa própria subjetividade e não nos damos conta do quanto medimos o outro a partir de nossos valores e crenças. Os magistrados não são exceção a essa regra!
Preocupado em corrigir tal distorção, em 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou uma espécie de manual de orientação para os tribunais do país, o chamado Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero.
No caso de Luana, o equívoco conceitual – e, portanto, de julgamento – foi corrigido pelo Superior Tribunal de Justiça, que tem o poder de rever as decisões dos tribunais estaduais. Por unanimidade, o STJ entendeu que, por proibir a violência baseada no “gênero”, e não no sexo biológico, a Lei Maria da Penha deve, sim, ser aplicada ao caso.
Assim se pronunciou sobre o assunto o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz: “Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”.
É comum vermos algumas pessoas se revoltarem contra o que sustentam ser uma legislação discriminatória: Ah, não é justo proteger desse modo a mulher. Afinal, também tem homem que apanha de mulher, e como fica o direito dele?
Com todo o respeito, tal ponto de vista revela muita ignorância não só sobre a realidade histórica e social em que estamos inseridos, como também sobre a função do sistema jurídico. É inegável que o Brasil é um país que ainda discrimina as pessoas pelo gênero: mulheres sofrem muito mais violência não só física, mas também psicológica, moral, sexual e patrimonial do que os homens!
Uma forma de corrigir isso é criando mecanismos mais eficazes de proteção dessa população, que deve ser tida como vulnerável. E não há como excluir disso as mulheres trans!
Isso ainda gera polêmica no judiciário porque, assim como o poder legislativo, em sua maioria ele ainda é integrado por homens, cuja formação foi feita em outra época. Não por acaso, para a jovem Luana, ficou difícil entender o porquê de tanta polêmica. Afinal, vê-se como mulher, e sofreu violência praticada pelo próprio pai. Como assim, a Lei Maria da Penha para mulher trans não se aplica?!
Isso chama nossa atenção para a importância não só do que diz a lei, mas também para aqueles que se põem a interpretá-la… Afinal, no limite, a lei não será o texto legal, mas a interpretação que o judiciário dará a ele!…
No caso de Luana, mesmo que em última instância, alcançou-se uma interpretação correta. Vamos brindar a isso, e aprender que uma luta apenas termina no último round!
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Acesse a íntegra do Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf